sábado, 7 de novembro de 2015

As formigas do acampamento

Das várias “acções” que fizemos na zona do “Mabebe” esta é recordada com uma particularidade muito especial.
Saímos bastante cedo do “Aquartelamento” e andámos, andámos; a parte da manhã e grande parte da tarde desse dia decorreu dentro daquilo que se pode considerar perfeitamente normal.
Já a tarde ia bem avançada quando o nosso “guia” avisou, fazendo gestos para não se fazer barulho, dizendo de forma quase inaudível que haveria alguém por perto.
Prosseguimos a caminhada, agora de forma mais lenta, evitando comprometer a nossa presença.
Sentimos o cheiro a fumo, ouvimos capinar. Redobrámos de cuidados, caminhando ainda mais lentamente, e evitando fazer todo e qualquer ruído por mais pequeno que fosse, já que “eles” estariam próximos. Ouvíamos mesmo já vozes. A aproximação continuou de forma tão lenta e sem o mais leve ruído que não fomos detectados.
Foi feito o envolvimento…
Quando deram por nós não tinham sequer hipótese de fuga. E nem sequer a tentaram…
Eram elementos da população, sem qualquer arma de fogo. Formavam um pequeno grupo que errava pela mata.(1) Possuíam apenas algumas “catanas”, catanas que não lhes foram sequer tiradas.
Passada a primeira fase de alguma perturbação, nós e eles de nervos ligeiramente alterados, mas em que tentámos fazer-lhes perceber que não lhes íamos fazer nenhum mal, a acalmia foi-se instalando…
Ràpidamente a noite caíu. Comemos. E distribuímos grande parte das latas da “ração de combate” aos elementos do grupo que mataram a fome como talvez desde há muito não o faziam. Também isto contribuiu para fortalecer a confiança.
A escuridão apenas não era total devido às labaredas das várias fogueiras que entretanto se reacenderam e que iam sendo progressivamente alimentadas com os ramos que o grupo anteriormente já cortara… e, logo que foi decidido pernoitar no local, esses montes de ramos foram aumentados.
O teor da conversa acabou por pôr completamente á vontade o grupo. Já tinham ouvido falar do “Mazumbo” (2), sabiam que lá teriam uma vida de longe melhor que aquela que tinham tido até então, se nos quisessem acompanhar – coisa que nem puseram em causa. E sossegaram.
Também nós nos sentimos melhor. Sabíamos que não era necessário mudar de local para pernoitar. Aliás, nem era sequer já oportuno.
O cansaço começou, pouco e pouco, a fazer efeito; o sono obrigou-nos a procurar sítio onde estender o corpo. As noites são compridas e a cama não é propriamente agradável…
Nem a continuação da conversa dos que persistiam em mantê-la perturbava o sono dos que já descansavam. Mas a conversa acabou por ir decaindo…
Eis senão quando, mexida aqui, mudança de local ali, uma coçadela acolá, algo nos perturbava. Em todas as partes dos nossos corpos sentíamos bichos a andar, a morder-nos… Foi um alvoroço!
Lá se aproxima um do lume e sacode a camisa. Logo outro o imita…
As formigas obrigaram-nos, praticamente a todos, a acordar, a coçar, a levantar e a aproximar-nos das labaredas.
Sacudimos as camisas, as calças, as cuecas, as meias para o lume; o resto da noite foi passado nisto.
Felizmente as fogueiras tinham ficado acesas. Ainda bem que havia suficientes ramos cortados que permitiram manter as fogueiras acesas até que irrompeu a madrugada.

E logo que foi possível prosseguimos o andamento até á “picada” onde, nesse mesmo dia, fomos recolhidos.

[ocorrência em Nov72]
João Leal Póvoa
*
- Notas do editor: 
(1) As pessoas que erravam pela mata diziam que viviam no “lumpenismo”.
Fantástico! A expressão só pode derivar de “lumpemproletariado” (lumpem, pessoa desprezível, em farrapos), também conhecido na linguagem marxista por subproletariado.
(2) O Mazumbo era uma aldeia que ajudámos a reconstruir e onde se iam instalando as populações e guerrilheiros que se apresentavam ou eram capturados. Connosco, a população atingiu centenas de habitantes, que tínhamos o cuidado de alimentar, mas que se foram dedicando à cultura do milho e do café após desmatarem os campos abandonados no início da guerra, produtos que comercializavam no Úcua ou no Caxito, para o que lhes fornecíamos transporte à borla.
Improvisei no Mazumbo uma escola primária para os alunos que já vinham da escolaridade fornecida nos acampamentos do MPLA. 
Não estive pelos ajustes e mandei as regras de segurança às malvas: convidei para professor a pessoa que já tinha sido professor num daqueles acampamentos e que havia sido capturada numa operação (ou apresentou-se, não recordo). 
Após a incredulidade inicial, quando percebeu que eu falava a sério, agradeceu-me com as mãos juntas, em jeito de prece. 
Ficámos muito amigos. Eu tratava-o por “Senhor Professor” e ele por “Senhor (ou "nosso") Alfero” e dava-lhe o apoio que os nossos escassos recursos permitiam, já que o bêbado do chefe de posto do Úcua e o merdoso do Movimento Nacional Feminino, esses, cagaram na iniciativa.

Nota especial sobre o autor do post

O Póvoa era Furriel do 1º Grupo de Combate (GC), comandado por mim, Alferes Santos.
O Póvoa sempre foi (e continua a ser) particularmente organizado e metódico. E um camarada muito leal, não se chame ele João Leal Póvoa. Foi sempre o meu melhor braço direito, a quem tantas vezes recorri para o que quer que fosse, mesmo quando a missão era difícil ou parecia impossível.
A ele se devem textos e vídeos que ficarão para a história. Um deles é a história em verso da CART 3564 – Os Furões, documento que segue de perto a História Oficial da Companhia.
Sem o Leal Póvoa, a CART 3564 nunca seria a grande Companhia que foi, é e será sempre: a alma mater dos 169 bravos da Companhia, incluindo 41 atiradores angolanos do “recrutamento do Estado”, designado “Grupo de Mesclagem”.
O 1º GC preparando-se para mais uma operação. No 1º plano do grupo em briefing, o Póvoa. Logo a seguir, meio encoberto, o alferes Santos a dar instruções aos bravos.

A CART 3564 foi, de longe, a melhor e mais prestigiada companhia de tropa comum, ou fandanga, como se dizia, que passou por Angola entre 1972 e 74.

Com exceção, claro, das unidades especiais: Páras, Comandos, Fuzileiros Especiais (Fusos) e unidades especiais compostas de antigos guerrilheiros (Grupos Especiais, conhecidos por GE’s ou TE’s, estes em Cabinda), a par dos famosos e combativos “Flexas”, ex-guerrilheiros criados e enquadrados pela PIDE/DGS e ainda as Unidades a Cavalo, os Dragões de Angola, criados no leste e que mantêm uma página no facebook, a ver clicando AQUI
Também havia unidades compostas por antigos catangueses, os “Catangas” e até por refugiados zambianos (“Leais Zambianos” ou “Leais”. Mas do que me foi dado perceber, de “especiais” teriam pouco, limitando-se a defender interesses étnicos ou de grupo.
Desde 1962 havia ainda as milícias da OPVDCA (Organização Provincial de Vigilância e Defesa Civil de Angola), algumas compostas só por mulheres.

Milícias da OPVDCA do Dambi/Quitexe, em Nov.73, com uma mulher e filha capturadas numa operação nossa, de assalto ao "Q Aldeia" dos cães da FNLA. A operação merecia fazer parte dos melhores manuais de contra-guerrilha. Lembras-te, furriel Santos, O Grande, do 4º GC? 

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